“Tio tira uma minha!”
“Vou dar um mortal, tira uma minha.”
“Sai da frente!”
Os chamados e pedidos que haviam começado tímidos, quase inexistentes, agora se avolumavam a ponto de me deixarem tonto.
Eu, sentado no meio da molecada, à margem da imunda Baía de Guanabara, na cidade do Rio de Janeiro, tendo o faraônico “museu do amanhã” ao fundo e cercado por uma multidão de turistas com diversos sotaques, me sentia impetuoso ao participar do grupo de mini-heróis que voavam sobre o insuportável calor carioca para saírem gloriosos no frescor da água do mar.
Me lembrei de um antigo pensamento: criança precisa de pouco para se divertir, é verdade, mas naquela situação não se tratava de escolha e sim de necessidade, de falta de opção. Onde ali acontecia uma simples brincadeira de criança, aparecia um dos maiores problemas sociais do país nas grandes cidades, e também no campo.
Falo do grupo de crianças do morro da Providência e adjacências que têm o costume, nesses dias de horrível calor no Rio, de mergulhar na Baía de Guanabara ao lado do “museu do amanhã”. Agora, nas férias escolares, o volume de crianças é ainda maior. Fui atraído por essa ação ao ir fotografar a sujeira da Baía para uma matéria do jornal AND. Eu já havia visto algumas fotos deles mergulhando, mas atrás dessa improvisada brincadeira dos moleques me chamou a atenção o retrato de uma ação política de “higienização”, reflexo da prática antipovo desse Estado que nega aos pobres os mais elementares direitos de vida.
Hoje, temos o “museu do amanhã” e toda a “revitalização” da área portuária tida como legado olímpico, onde milhares de turistas do país e do mundo vêm, atraídos por sua magnitude, passear e fotografar. Ao seu redor encontram-se esses meninos que não se incluem nesta chamada “revitalização” da zona portuária – área essa que não se preocuparam em construir alguma forma de ocupação para as crianças dos arredores por apenas visarem o lucro.
Na verdade, são pessoas “invisíveis” que não trazem nenhum interesse financeiro para a cidade. Ali no meio dos turistas que vêm gastar, que pagam ingresso, consomem no “museu do amanhã” e seus arredores, nos confrontamos com o costumeiro abandono. As pessoas que não geram interesse, pois não tem condições de gastar, de consumir e, portanto, não são vistas pelos “governos”; elas não existem. E é assim que começa a infância dos que moram numa favela, sendo excluídos desde criança. Na verdade, são vistos como entrave aos interesses financeiros desse sistema capitalista no qual só existe quem pode comprar.
A grande maioria daquelas crianças está em férias escolares e não tem nenhuma oferta de recreação. Jogadas à sorte, à vida de insegurança da favela, com risco de serem influenciadas pelo crime, algumas filhos de pais que precisam trabalhar em horário integral e não têm onde deixar as crianças; elas são jogadas à sorte.
No meio do recesso escolar, essas crianças não têm uma colônia de férias, uma atividade oferecida pelo estado para ocupar a mente, alguma atividade esportiva, de lazer e recreação. As antigas colônias de férias que existiam nas escolas públicas foram enterradas no esquecimento sob os entulhos da destruição do ensino promovida pelos consecutivos “governos”. Se ter ano letivo com a crise da educação já é difícil, imagina colônia de férias! No Rio de Janeiro, o “Projeto Botinho” é cancelado depois de décadas levando crianças a participar, durante as férias, de cursos com os bombeiros nas praias. O motivo é a crise financeira que o estado atravessa.
Os filhos das massas das favelas e periferias são crianças que não existem ao olhar desse Estado inimigo do povo. Só se fazem enxergar quando chegam à orla da Zona Sul e incomodam ao tomarem o espaço considerado cativo por aqueles que têm dinheiro para gastar. A exclusão, a falta de opção já começam cedo nas famílias do povo. O não investimento na juventude tem um interesse político e financeiro. As privatizações das prisões explicam muito bem o não investimento nas crianças. Atividades nas quais a construção social, da personalidade, do caráter e influência de boas ideias não interessam a quem investe fortunas em cadeias e espera retorno disso, agora também com as privatizações.
Para os pobres, a segregação, o rigor da lei e a repressão, e o mesmo vale para as suas crianças e adolescentes. Essa é uma das marcas desse Estado burguês-latifundiário que só serve aos interesses das classes reacionárias e do imperialismo. Vivemos dois “mundos” em um, separados por um abismo. Os que, ao olhar do Estado não consomem e, portanto, não existem, e os que consomem. Assim, vamos vivendo nessa barbárie, em que uma guerra se instala nessa diferença e na qual o inexistente só aparece quando interfere no dia a dia dos existentes.
É dever de todos nós acabar com esse império corrupto do velho Estado, que só visa o lucro das classes dominantes e exclui a imensa maioria da sociedade. Isso, se quisermos viver numa sociedade sem opressão, exploração e violência contra o povo, em que todos realmente existam e o “amanhã” não seja apenas um nome de museu.