Os curtos anos compreendidos entre 1945, data de ingresso no PCB, e 1953, quando falece, foram provavelmente os mais intensos da atribulada existência de Graciliano Ramos. Além da atividade político-partidária, a qual se dedicou com paixão – o que se atesta pelos inúmeros discursos, cartas, manifestos, crônicas e campanhas que subscreveu –, o mestre Graça continuava dando duro para sustentar a família numerosa. Acumulava dois empregos: um, como inspetor de ensino, outro, como revisor do jornal “Correio da Manhã”1.
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Graciliano Ramos enriqueceu a literatura nacional com critérios proletários
Neste ambiente de trabalho ininterrupto e grande agitação política, nosso grande escritor tecia, com zelo de artesão, os quatro volumes do seu livro Cadeia – como se chamava, inicialmente, Memórias do cárcere.
As ‘Memórias’
Não era apenas a dura rotina de trabalho e militância que dificultava a redação de Memórias do cárcere. Graciliano passara privações terríveis nas cadeias do Nordeste, do Rio, de Ilha Grande, nos porões de navios-prisão. Vira iniquidades sem par, como a situação de companheiros torturados e as deportações de Olga Benário e Elisa Berger para a Alemanha nazista. Conhecera a degradação nas entranhas do fascismo tupiniquim. Contudo, dado seu comedimento, mesmo pessoas próximas desconheciam o alcance dramático das suas experiências. Ora, escrever sobre elas era, também, revivê-las.
Outra dificuldade vivida pelo autor, confessada logo no início do livro, era falar sobre pessoas reais, viventes de carne e osso. Por vocação, o grande ficcionista recusava os estereótipos e as idealizações fáceis. Descreveria, por isso, lado a lado, os gestos nobres e solidários e a torpeza, a coragem e o medo, os lutadores de todas as horas e os que, acostumados a nadar a crista da onda, não puderam suportar o contra-ataque furioso da reação. Diria:
“Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com frequência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano terrível.”2.
Na jornada, conviveria com presos comuns, em ambiente de grandes privações. Observador “por índole e por ofício”, estabeleceria contato com aqueles seres do subsolo social, sentiria suas dores, interessar-se-ia pelas suas vidas. Legaria para a história um libelo implacável contra os algozes e as infâmias que presenciou, como neste trecho em que descreve a prisão de Ilha Grande:
“A precisão de um mictório chegou-me forte, levantou-me, dirigiu-me àquele ponto. Já havia me achado ali, pela manhã... mas então o refúgio estava deserto. Agora havia ajuntamento, e o que percebi horrorizou-me. (...) Pendiam do teto alguns chuveiros, quatro ou seis, e junto a uma parede se alinhava igual número de latrinas, sem vasos, buracos apenas, lavados por frequentes descargas rumorosas. Em todas viam-se homens de cócoras, e diante deles estiravam-se filas, esperando a vez, cabisbaixas na humilhação, torcendo-se (...). Caras macilentas, o suor a escorrer nas barbas crescidas; magrém e sujeira, chagas negras medonhas produzidas pela mucurana; fadiga, nudez mal disfarçada em trapos imundos... havia filetes de sangue às margens das latrinas, coágulos de sangue. (...) Afinal, pude esvaziar a bexiga, livrar-me da exposição miserável, tornar ao galpão. Tinha sono, mas não consegui dormir. O frio espicaçava-me, os queixos batiam castanholas.”3.
Vargas, que à essa altura aproximava-se do Eixo, seria apresentado em diferentes momentos como um “títere”, “paisano movido por generais”. No trecho em que relata a deportação de Olga e Elisa, Graciliano anota:
“A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura ignóbil.”4.
Aqui, o caráter geralmente sóbrio cede lugar, como se vê, à indignação contra a opressão. Porque o fogo terrível da luta de classes envolvia, e movia também, o preso político Graciliano Ramos.
‘Viagem’
Em 1952, Graciliano, então presidente da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), interromperia a redação de Cadeia para realizar um sonho antigo: conhecer a União Soviética. As suas notas, escritas às pressas entre uma parada e outra, virariam o livro Viagem.
São inúmeros os livros de intelectuais ocidentais sobre a vida nos países do campo socialista, neste período. Tratava-se de verdadeiro, e necessário, “esforço de guerra”, para contrapor-se à feroz campanha anticomunista desatada pela imprensa capitalista. Jorge Amado lançara, em 1951, o livro O mundo da paz que foi apreendido das livrarias pela polícia. Graciliano não fugiria do seu posto, mas mesmo aí percebe-se uma nítida diferença em relação a outros autores: o observador arguto, cáustico algumas vezes, engraçado outras, nunca superficial, deixaria suas digitais bem marcadas nesta obra. Não são meras impressões ou cifras compiladas: Viagem também é obra de grande valor literário. Numa interessantíssima passagem, diria sobre a aparente uniformidade que presenciou:
“Um ofício não é superior a outro – e os homens tendem a uniformizar-se. Essa ideia choca o nosso individualismo pequeno-burguês: achamos vantagem nas discrepâncias, receamos tornar-nos rebanho. E nem vemos que somos um rebanho heterogêneo, medíocre, dócil ao proprietário.”.
Trata-se, aqui, de um problema de fundo. Na sociedade baseada na exploração, os adornos e vestimentas funcionam como traços distintivos entre as pessoas, o que não acontece no socialismo: aí, o que importa em primeiro plano é o ser humano e a ideologia que o guia – a alma mesmo das gentes, como dizia o Presidente Mao.
Graciliano e o realismo socialista