Em 19 de dezembro, o oportunista Gabriel Boric foi eleito no Chile, após ficar atrás do fascista José Antonio Kast no primeiro turno e ganhar no segundo com 12% de diferença. Contando todo o eleitorado apto, a diferença é de 6%, uma vez que a abstenção chegou aos 44%, quase seis milhões e meio de eleitores em um país de 19 milhões de habitantes. Isso ocorre num contexto de enorme agonia do capitalismo burocrático no país – o Chile fecha o ano de 2021 com 7,2% de inflação, a maior taxa desde 2007, incidindo sobretudo nos alimentos e no combustível – e em seguida de um gigantesco movimento de massas que chacoalhou o país em 2019 e 2020, em que pese sua espontaneidade ter sido aproveitada por oportunistas e pela direita liberal para fins reacionários com a “Nova Constituinte”.
DIÁLOGOS E COMPROMISSOS
A eleição de Boric possui dois elementos a se ressaltar. O primeiro é que, através de um discurso modernizante, busca reformas necessárias para reimpulsionar o capitalismo burocrático no país; todavia, isso necessita de uma maior centralização que não pode garantir sem maioria no Senado nem no Congresso. Sua coalizão, “Aprovo Dignidade” (formada pela Frente Ampla de Boric e pelo Chile Digno, do revisionista Partido Comunista do Chile) tem 37 deputados, de um total de 155, e somente cinco senadores de 43 cadeiras. Para poder avançar suas pautas, portanto, Boric terá necessariamente que fazer acordos com a coalizão de direita “Chile Vamos”, que detém maioria das cadeiras na Câmara (71) e no Senado (19), reduto de notórios pinochetistas.
O presidente já tinha, inclusive, dado esse tom mesmo antes de sua posse no dia 11 de março – à exemplo de sua entrevista à BBC Brasil, na qual disse que faria um governo de “todos”, do “diálogo” e do “afeto”; tecendo oportunisticamente críticas às “elites” do país, enquanto ao mesmo tempo diz que elas “não precisam ter medo”. Uma mostra prematura desse esforço é a indicação de Mario Marcel, presidente do Banco Central chileno e funcionário do Banco Mundial, para o Ministério da Fazenda.
Convite à capitulação
O segundo elemento a se ressaltar é que a vitória de Boric ocorre nas eleições presidenciais que sucedem os levantes combativos de massa contra o governo de Sebastián Piñera. Os recentes levantes no Chile, Equador, Peru e Colômbia fazem parte do mesmo ciclo de protesto popular contra a alta do custo de vida, rapidamente antagonizando contra o sistema como um todo – expressão da crise geral do capitalismo burocrático e de seu aparelho de Estado.
Nessas circunstâncias os oportunistas se alçam, fazendo da luta de massas seus trampolins políticos, apresentando-se como intermediários entre as massas e o velho Estado, como elementos apaziguadores. Esse tem sido o eixo central da vida política de Boric, que, segundo entrevista de seu marqueteiro à Folha, sempre fora identificado como um político “amarelo” (no Chile, um conciliador, “entre a esquerda e a direita”) e que não tinha moderado seu discurso, senão que sempre fora assim. Tendo despontado politicamente na revolta estudantil de 2011 e 2012 como presidente da Federação de Estudantes do Chile, se elegeu logo após como deputado, em 2014.
No fim da década de 2010, Boric atuou por dentro dos protestos, buscando direcionar a revolta popular para uma “saída política”. Isto é, a “via institucional” do “Acordo pela Paz e a Nova Constituição”, proposta negociada entre a direita liberal reacionária e o novo e velho oportunismo chileno (isto é, ex-membros da concertación*). Enquanto aos “violentos”, ou seja, às massas que permanecem em revolta e os movimentos revolucionários de massas, Boric promete “fazer cumprir a ordem pública” e espera que “esses setores sejam cada vez mais minoritários”. A “ordem pública” no Chile, como se sabe, são as centenas de manifestantes presos ilegalmente e cegados pela polícia após 2019.
A “Nova Constituição”, aqui, aparece para moralizar e aperfeiçoar o velho Estado, na aparência de democracia absoluta, mas funcionando como uma verdadeira ditadura de grandes burgueses e latifundiários. Observamos essa mesma dinâmica no Peru, onde o reacionário Pedro Castillo elegeu-se sobre plataforma e organicidade similar. Como expressão de um novo ciclo de crise e protesto popular, o velho Estado precisará se reformar e repetir, mesmo em forma, processos similares: candidaturas personalistas, partidos fisiológicos ou coalizões sem princípios, discursos “anti-elite” e para a “unidade da nação”; para sufocar a iniciativa das massas e estancar a hemorragia econômica. Em certo sentido, é o mesmo que tende a ocorrer, neste ano, no Brasil. O caminho do povo, por sua vez, permanece o mesmo: rejeitar a chantagem do oportunismo e o seu apodrecido caminho burocrático.
Nota:
* Termo que se refere à Coalizão de Partidos pela Democracia, força política oportunista que gerenciou o velho Estado chileno de 1990 a 2010.